1.
A consciência é um fenômeno parcial, no sentido literal de ser limitada à percepções particulares. As totalidades e infinitos são conceitos sintéticos, incapazes de serem analisadas empiricamente. Cedo ou tarde, a consciência morre, e a alma desaparece. A memória é corrompida, os dados são perdidos e esquecidos. Mesmo se tivéssemos o tempo infinito para percorrer todo o espaço, precisaríamos de uma alma capaz de gravar em seu cinema interior todos os pontos possíveis da realidade, mas esse simples pensamento é um absurdo: como o espaço limitado de nossa cabeça poderia conter o infinito do espaço exterior? Somente podemos lembrar porque a nossa lembrança é uma espécie de renderização, uma maquete sintética da prolixidade do real. E para lembrar, precisamos sempre esquecer: apagar dados, recalcar memórias, reprimir sensações, desaprender pensamentos, excretar matérias, progressivamente anmenesiar nossa alma para enfim poder tomar nova consciência daquilo que seja lá se quer conhecer. A nossa consciência é possível, mas somente a partir de uma laboriosa atividade a que permanecemos inconscientes.
2.
O mandamento socrático diz para conhecer a si mesmo, mas, se os naturalistas estiverem corretos sobre a composição microcelular de nosso corpo, precisamos concluir que sabemos muito pouco sobre nós mesmo. De toda nossa extensão, temos consciência somente de partes mínimas e estritas: podemos ver, com a clareza de nossa visão, nossos membros, e pelo prodígio dos reflexos, das pessoas e máquinas que desdobram nossa percepção em representações, ver nossos rostos e órgãos internos. Podemos cheirar nossas partes e sentir o toque delas, e até aos sons de nosso estômago é possível ouvir. Mas, se é certo que o nosso corpo fala, a verdade é que no ele fala muito pouco. Claro, se você for um médico ou biólogo, e estiver iniciado na linguagem do corpo, escutará, nesses simples indícios, um longo discurso, e inclusive cobrará caro por isso. O ganha-pão do médico vem desse terrível defeito congênito dos seres complexos: não temos ciência perfeita de nosso corpo, não sabemos direito o que ele pensa e sente.
3.
A inconsciência, além de ser um fenômeno psicológico, é então também um fenômeno físico, que abrange não só a res cogitans, mas também a res extensa que lhe contém. Você, por acaso, sabe do que se passa em seus confins? O que conhece sobre os seus órgãos, fora que nessa manhã algum deles acordou dolorido? Por que sente essas dores na altura da bexiga, na dobradura dos músculos, na nervura do cérebro? Por que seu cu está com diarreia? Tem você alguma ciência das infinitas bactérias e vírus que se ocultam por entre as suas multidões de células? SA dor no seu peito é infarto ou gases? Esse inchaço não é nada ou é um tumor? Sabe alguma informação sobre essa multiplicação cancerosa e assassina, conspiração tramada dentro do seu íntimo, morte que vem de dentro para fora, fabricada pelas mesmas máquinas que deveriam produzir os seus meios de vida?
Há, nisso que chamamos de corpo, toda uma longa cadeia produtiva, com complexa divisão de trabalho, de que somos alienados no curso de nossa existência. E se não somos nós que pensamos essa atividade, quem então deve pensá-la? O fisiologista irá dizer sobre reflexos condicionados, sistema neuro-motor, atividades involuntárias, etc. É evidente que existe um hardware, uma máquina para fazer todo o corpo humano funcionar com todas as faculdades produzidas desde que éramos simples embriões. Mas é necessário extrair as consequências metafísicas da biologia: se cada célula de nosso corpo é um res extensa e cogitans autônoma, então somos literalmente compostos por uma multidão infindável de almas.
A consciência é um fenômeno animal? Somente os chamados seres superiores possuem consciência? As plantas, afinal, não possuem alguma forma de ciência? Não sentem a luz e a água? Não existem inclusive plantas carnívoras que capturam presas? E os protozoários? É concebível que os bolores não tenham consciência de que estão em um meio sem oxigênio, e que precisam iniciar a respiração anaeróbica? E uma célula? Teria a célula, essa menor unidade da vida, alguma capacidade de ciência? A partir do contato com hormônios e proteínas, não é capaz de desempenhar as mais variadas funções?
Por mais que toda a vida se explique por procedimentos físicos e químicos, que fazem que uma célula, se estimulada pelo hormônio X, produza uma reação Y não seria necessário haver, naquela res extensa que recebe impulsos das entidades químicas, algum gênero de res cogitans, uma consciência que, ao sentir esses impulsos, responde, performa e age, com alguma finalidade determinada?
4.
O privilégio da consciência cerebral perante o corpo talvez sugira apenas que o corpo é uma monarquia, despoticamente ordenada pelo cérebro. Isso, no entanto, talvez seja apenas um complexo de grandeza do Homo sapiens, que há muitos séculos se regala pelo tamanho de seu cérebro. Seria nosso cérebro esse instrumento disciplinar tão poderoso, um leviatã capaz de policiar cada ponto de seu corpo bio-social e micro-celular?
Talvez, passada essa nossa ilusão imperialista da razão, passemos a descobrir que o corpo não é uma monarquia absolutista, mas um gênero de câmara parlamentar, em que diferentes partes e interesses se fazem representar. Ou então, como toda sociedade baseada na divisão do trabalho, caberia conceber a hipótese de que nosso corpo vive uma guerra velada e sistemática, e que toda a sua organização seja destinada à exploração das partes pelo todo.
Se o nosso corpo, como as sociedades, também se separa em classes, (isso é, em formas de vida antagônicas e exclusivas, em que para uma viver, a outra deve morrer, para uma gozar, a outra deve trabalhar), podemos estar a enxergar o corpo desde essa perspectiva: não como uma máquina de continuo aperfeiçoamento na direção da saúde, mas uma máquina de auto-destruição, que dirige a vida para a morte não porque seu maquinário é fraco, porque não possui forças suficientes para manter-se viva, ou porque a morte é uma necessidade imanente da vida orgânica, mas porque há células que, exploradas pelo corpo, desejam o repouso da morte.
5.
A descoberta das variedades genéticas aleatórias, aliado às leis darwinistas de seleção natural, desenvolveu-se como uma filosofia da determinação material da vida. Nesse neo-mecanicismo, a vida foi tomada como um fenômeno acéfalo, regida cegamente, ao acaso das variações genéticas e das contingências econômicas naturais. Sub-repticiamente, dizem que vida deseja viver, e que somente por necessidades bio-econômicas é que ela chega se encerrar - seja pela fraqueza congênita do organismo, seja pela escassez energética do meio ambiente.
O que ocorreria, no entanto, se às coisas fosse admitido novamente o desejo, a vontade, a razão, a alma, e toda a metafísica que a ciência cuidou de matar? Teríamos que concluir, contra os prognósticos de biólogos celebres, que o organismo não é necessariamente um sistema perfeitamente equilibrado. Nele, as partes não concorrem para o fim comum do todo. O corpo, na verdade, vive em guerra de classes, parte contra parte, eu contra eu, explorando e matando a si mesmo - porque o eu não é uma entidade irredutível.
papo reto
anima mundi