BIOGRAFIA DE UMA CAMISA VAREJISTA
Fábula naturalista e sentimental de uma mercadoria genérica.
Para N. e S.
Produtos orgânicos não costumam ter a mesma durabilidade dos sintéticos. Para corrigir esse malefício bioquímico, a indústria agrícola investe pesado em experimentos eugênicos.
Alimentos transgênicos são nada mais do que animais e vegetais selecionados geneticamente para o cultivo em série, nos infinitos latifúndios que ocupam as terras produtivas de nosso país. O objetivo é estandardizar o gene desses gênero o máximo possível, reduzir toda a diversidade da população originária e deixar exclusivamente a raça superior: a de crescimento mais acelerado, maiores proporções, e claro, aquela capaz de suportar muito tempo em celeiros, contêineres e estoques, quieta e taciturna, pacientemente esperando pelo dia em que será trocada por dinheiro e possa cumprir a sua função de ser valor de uso.
Os pesquisadores e técnicos capitalistas desejam de todas as maneiras estender a validade de seus produtos, fazê-los perfeitamente abstratos e eternos quanto as camisas sintéticas, criaturas semi-divinas, quase imunes aos efeitos da velhice e da decomposição. Mas, mesmo na biografia dos melhores objetos, existem pontos altos e baixos. Há toda uma jornada do herói por trás do ciclo produtivo de uma simples camisa:
De longe supervisionada por um engenheiro formado em faculdade qualquer e sucateada de país de terceiro mundo - mulher batizada em homenagem a alguma diva pop hollywoodiana que acabou de herdar uma dívida de dez mil reais -, pela precisão artesanal de máquina semiautomática de corte e costura, a camisa nasceu.
Bêbada de tarja preta, a engenheira não presta atenção quando a camisa corre pela esteira e sem nenhum cuidado é enfiada pela mão do empacotador - no sábado se passou na bebida, gastou todo salário em jogo de azar e apostas esportivas e ainda não é nem fim de mês - e levada para dentro de um caminhão abafado e sem luz.
Amontoada entre sua família de irmãs gêmeas, tão parecidas que parecem clonadas, a camisa viaja até uma terra distante. Passam-se dias, até que seja entregue ao estoque de alguma loja. A cada dia, as irmãs desaparecem. Entra dinheiro no caixa, e enfim ganham o direito de serem utilizadas. A camisa, esperando sua vez, sonhava com o dia em que também cumpriria ao seu destino de mercadoria. Não precisava ser ninguém muito nobre, bastava querer um presente de última hora, não fazer feio na confraternização do escritório, qualquer coisa, e enfim dentro do armário, entre as roupas de diferentes marcas, a camisa aguardaria, ansiosa, o seu dia de dançar naquela balada alternativa do centro da cidade que todos estão falando.
Esse cliente milagroso nunca chegou. O pólen infecundo da poeira que entra e sai pelas vias microscópicas das solas de sapatos e correntes de ar se acumulou sobre o seu tecido branco, e depois de quase um ano esquecida, na pilha soturna de peças fora de linha, foi vendida para um brechó.
Lá, acabou na pilha de cinco reais, novinha, a vendedora esperava vê-la comprada em menos de uma semana, e enfim seria vestida.
Foi então que veio o acidente.
Nem dois dias e uma fubanga desgraçada, sem nada na cabeça cheia de duas garrafas de vinho, em um movimento expansivo e exagerado deixou derramar o restinho que estava na taça, e acabou para sempre com a camisa.
Depois desse dia nunca mais foi a mesma. Igual a ela sempre existiam milhares de outras, igualmente ordinárias, mas agora, marcada por essa cor horrível de sangue, que não sai da pele mesmo depois de esfregar com sabão, não, ninguém iria vesti-la. Seria pano de chão.
Decidiu pelo suicídio, mas lembrou que era apenas uma camisa, sem veias para sangrar ou cérebro para explodir com a arte da espingarda. Mesmo se atirada em uma máquina, e picotada em pedacinhos minúsculos, ainda estaria ali, só que fatiada em infinitesimais partículas de inutilidade.
Os alimentos são sortudos. Estragam cedo, perdem todo seu valor tão logo termine a validade, mas sua formação bioquímica é compensada pela milagrosa indústria da reciclagem. Todo o dispêndio inútil dos latifúndios capitalistas pode ser reaproveitado na fabricação biocombustíveis, e de novo darão de comer para máquinas, plantações e animais. Mas a natureza é injusta, e faz as camisas sintéticas durarem para quase todo sempre, seja na forma elevada da mercadoria, seja como trapo que serve somente para pano de chão.
“Do luxo ao lixo”, suspirou a camisa, e estoicamente esperou duzentos anos, limpando as latrinas mais imundas, até poder enfim entrar em decomposição.
FIM.