SOBRE A MALDADE DOS CHIMPANZÉS
Contra a teoria da descendência: porque a origem genealógica não é causa eficiente de nada.
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1. INTRODUÇÃO
Ainda não pude assistir a esse novo seriado sobre a política dos animais. Se compreendi bem o que contou sobre o último episódio, um grupo de chimpanzés betas tramou uma emboscada e matou um alfa abusador.
Apesar de reconhecer que o líder do bando abusava de seu poder, e compreender as razões da revolução, você também se espantou com o raciocínio homicida dos chimpanzés. E depois de comparar com o crime organizado e a estratégia militar dos humanos - formas avançadíssimas de racionalização do assassinato - passou àquela bela dissertação sobre origem biológica da maldade: “o ser humano e o chimpanzé, que descendem de um mesmo ancestral, são portanto maléficos por natureza”.
2. CRÍTICA DA IDENTIDADE GENEALÓGICA
De um ancestral comum, você me disse, nasceu tanto o ser humano quanto o chimpanzé. A natureza, afinal, como você bem sabe, é uma grande família, em que se partilha semelhanças genéticas essenciais e irredutíveis.
Se observarmos na árvore genealógica da vida, veremos que os irmãos humano e chimpanzé, filhos do mesmo pai, ora, naturalmente também são netos de um mesmo avô, e veremos então que a família era muito maior do que se pensava: porque esse avô, ancestral que deu à luz ao macaco ancestral que engendrou tanto o humano quanto o chimpanzé, também deu a luz ao magnífico gorilas, que você mesmo tanto admirou como naturalmente mais bondosos que os chimpanzés.
Parece, assim, lamentar que sejamos nós mais próximos dos malignos chimpanzés do que dos bondosos gorilas, mas a dúvida que me ocorreu é a seguinte: Pelo que parece, a descendência é o que determina a essência do mal e do bem em cada espécie. Como, no entanto, de uma mesma criatura ancestral pode ser possível de se produzir duas essências contrárias - o mal e o bem -? se daquele avô comum brotou tanto a bondade do gorila quanto a maldade do chimpanzé, então ou nele deveria haver tanto a bondade quanto a maldade, ou então, uma essência radicalmente diferente daquela contida em sua semente.
3 REFUTAÇÃO LÓGICA DA TEORIA DA DESCENDÊNCIA
Examinemos cuidadosamente como da essência daquele avô ancestral pode fazer nascer duas criaturas essencialmente opostas:
Se todo filho é bom e mal segundo causas genealógicas, e se o avô fez dois filhos, um que é bom e um que é mal, logo o avô continha — ao mesmo tempo — a maldade e a bondade.
No entanto, se o avô é bom e mal ao mesmo tempo, então ele já não é da mesma essência de seus filhos, que são ou apenas bom ou apenas mal.
Isso por si só já é prova suficiente para demonstrar que na natureza as essências não são exatamente eternas, e que entre ancestral e descendente se introduzem descontinuidades que não nos permitem descobrir na ancestralidade entre homens e chimpanzés uma causa eficiente de suas maldades comuns.
Se de alguma forma um ancestral pode ser causa eficiente da natureza diferente da sua - e assim, de um mesmo ser nascer tanto a gorilas quanto chimpanzés - é porque essa natureza referida não é eterna, mas sim mutante, e tal qual ensina Lamarck e Darwin, se transforma no curso da história. A biologia é, portanto, a ciência que explica essa ordem de transformações pela teoria da evolução.
Se a evolução explicar a transformação da essência de alguma forma, isso se deve ao fato dela jamais se referir a identidades fixas e imutáveis. Qualquer ciência evolutiva deve tomar o devir como lei. Ora, se a descendência implica em transformação, não é possível de forma nenhuma atribuir a priori uma manutenção de qualquer identidade. Se de um mesmo avô podem nascer tanto ao chimpanzé quanto ao gorila, por que de um mesmo pai — o elo perdido entre nós e os chimpanzés — precisaria necessariamente surgir criaturas da mesma essência?
Não digo que não sejamos parecidos de alguma forma com os chimpanzés. Talvez, sejamos tão malignos quanto eles, e talvez eles sejam tão malignos quanto nós. Mas me parece evidente que a causa desse mal não pode se esgotar na genealogia: porque ela não somente permite a identidade, mas também a diferença.
Isso se torna mais claro no exemplo do bonobo: esse animal, ainda mais belo que os gorila, descende também do mesmo ancestral comum ao humano e o chimpanzé. Os bonobos, no entanto, são reconhecidos pela docilidade de seu comportamento! É um contraste absoluto à carnificina dos chimpanzés. Como o mal poderia estar já previamente determinado no ser humano por um ancestral maligno, se esse mesmo ancestral supostamente maligno engendrou os bondosos bonobos?
Essas contradições facilmente se desfazem se compreendermos que a descendência não é causa eficiente para comportamento algum. Uma mesma origem produz fenômenos diferentes, tornando-se assim impossível estipular uma essencialidade genética entre pais e filhos, ancestralidade e descendência. As causas verdadeiras para o nosso modo de ser, portanto, serão descobertas em outro lugar que não em uma ancestralidade biológica.
6. VOCÊ ESTÁ PRESTANDO ATENÇÃO? OU ENQUANTO FALO ESTÁ PERDIDO EM OUTRAS IMAGENS?
Quando você viu na televisão ao bando de chimpanzés betas e oprimidos assassinar friamente ao alfa superior, e viu o quanto se alegraram ao matar aquele que odiavam, concluiu que podiam ser tão cruéis e meticulosos quanto o pior ser humano.
E só então a causa genética da maldade.
Ora, saber se a ancestralidade é causa eficiente da maldade humana somente é possível ao tomar a priori a natureza - humana ou primata - como uma entidade essencialmente maligna, violenta ou egoísta.
E esse modo de vida em que vivemos, você conclui no desfecho de sua carta, é um triste reflexo de nossa constituição, da nossa natureza biológica inalterável: somos assassinos, porque somos macacos.
Mas, como já estamos de acordo, sabemos que não somos o que somos segundo essa ordem genética imutável da descendência. E ao contrário, no curso de nossa conversa, descobrimos que até a genealogia, se esta pode ser uma ciência verdadeira, haverá de ser uma ciência do devir. Ora, um mesmo ser pode ser origem tanto da maldade dos chimpanzés quanto da bondade do bonobos: As essências na natureza não são eternas ou sempre idênticas, mas se transformam de geração em geração.
7. AS VERDADES ENTRE NÓS DOIS
Você não parece duvidar seriamente que a maldade humana não seja verdadeira. Poderia se objetar a sua medida e intensidade, se contrastado a todo bem que nossa espécie pode produzir, a todo o amor e generosidade que sentimos uns diante dos outros, mas sei que isso jamais seria suficiente para negar a impressão que você faz da gente. Está perfeitamente convencido de que somos criaturas essencialmente ruins, e que seremos para sempre assim, e por isso se encantou com a maldade dos chimpanzés: por lhe parecer tão parecida com a nossa.
São ideias muito amargas. Talvez, como remédio para tal amargura, poderia lhe recomendar a ver menos dessas espetaculares guerras, entre os alfas e betas chimpanzés, e mais de alguma coisa mais amena e amável, como as belas histórias a respeito dos matriarcados bonobos. Mas para quê, se sabemos que esses espetáculos não lhe interessariam? Você só se comove com a guerra, com os assassinatos e demais imagens da maldade. Como de alguma maneira poderia aceitar ser tocado por criaturas puras como os bonobos?
Mal começamos no dever de pensar uma ideia de forma comum, para esclarecer um ao outro de nossas insuficiências particulares e em benefício da uma perspectiva superior do absoluto, e já descobrimos diferenças irredutíveis: Você não suporta alguma coisa nos bonobos, enquanto eu simplesmente não tolero aquelas histórias de matanças dos chimpanzés: eu nunca irei passar tanto tempo vendo um seriado sobre crimes de guerra animais, assim como você nunca irá saber o que fazem afinal os animais quando não estão matando e destruindo.
Não se preocupe agora com a verdade: quero o absoluto, sim, mas quero também, e talvez sobretudo, as ideias conforme brotam do seu coração, as palavras que guardam o calor de seu toque, o acento de sua voz, e que por isso valem cada instante.
Por isso, preciso saber, depois desse longo discurso tagarela sobre a essência do mal: Como o seu sistema de pensamento pode pensar a gênese da bondade pelo mal? Ou as notícias dos matriarcados dos bonobos não diz nada para a sua teodiceia da natureza?
Mande um beijo a C.,
Seu,
zumbi-mallarme