DESEJO DE MATAR
Fala-se muito sobre a natureza de uma pulsão de morte, mas pouco sobre os seus objetos. Nesse ensaio, desejo pensar menos na origem da violência, e mais na origem de seus objetos.
1. A GUERRA COMO LEI BIO-ECONÔMICA
Escrevendo minha tese de doutorado, fico imerso na questão das guerras raciais, conforme discutidas no início do século XX. Nessa época que preparou as Grandes Guerras Europeias, a pulsão de morte, pela mão de uma série de intelectuais, ganhou consciência clara e teórica, objetivada no outro racial e estrangeiro.
As teorias raciais respondiam a alguma necessidade libidinal presente nos corpos europeus daquele tempo. Na elaboração desse impulso, sobretudo por meio da seleção natural darwinista, tais sujeitos transferiam à ciência natural o que era desejo íntimo de exterminar a determinados objetos. É como se dissessem: Não somos nós que desejávamos exterminar as raças estrangeiras, mas é a própria natureza que nos obriga a isso. A história natural, para os racistas, sempre foi a da guerra. Conforme escreveu Oliveira Martins, no fim do século XIX:
[Ao longo de toda a história] atropelam-se os rivais, passa-se por cima dos fracos; o que tropeçou cai, o que parou jaz esquecido na poeira da arena, e afinal fica só em campo aquele cuja força e cuja destreza tornaram vitorioso. A arena pertence-lhe. Na história, a nossa arena é o mundo; e no concurso das raças dos seus habitadores humanos, o domínio coube à dos indo-europeus que adiante de todos chegaram a conquistar os elementos de uma ação que reage obre todos os outros povos, para os avassalar, ou para os exterminar.1
Esse conceito de espaço vital, enquanto necessidade objetiva da guerra, já dormitava nos livros de Darwin. Para esse biólogo, a luta entre e intra espécies era fato econômico e natural, determinado pela relação inversa entre a escassez de recursos úteis dentro de um mesmo território e o crescimento progressivo das populações. A guerra, portanto, se torna consequência da mesma lei que preside o crescimento da vida: “Embora algumas espécies estejam crescendo, com maior ou menor rapidez, em número, nem todas podem fazer isso, pois o mundo não comportaria”.2
2. NECROPOLÍTICA E ECONOMIA: PRINCÍPIO PARA UMA AUTOCRÍTICA
Em algumas passagens da minha tese inscrevi essa “descoberta” da necropolítica da natureza como parte de uma determinação ideológica e infra-estrutural.
Para ser mais claro: a ciência do espaço vital e da livre concorrência entre espécies me parece ter se desenvolvido como ideologia capitalista, ansiosa para reabrir o processo de acumulação de capitais. Pela pilhagem dos tesouros e territórios, seria possível retomar o crescimento econômico e, sobretudo, sem qualquer necessidade de transformar o modo produtivo nacional, acalmar as contradições nascidas da guerra de classes.
O filo-estado nacional e fascista, ao transformar o estado nacional em produto espontâneo do sangue, instaurou uma rede de afinidades e alianças, que unificava todas as contradições de classes pela pertença a uma mesma genealogia mitológica.
(Nunca esquecer: o racismo é uma ideologia familiar e patriarcal, para quem a unidade política e redes de aliança é determinada pela marca do sêmen: nós somos um porque nosso pai é o mesmo; somos do mesmo sangue, nascidos do mesmo gene, e não poderia ser diferente).
A raça, enquanto criação de um filo-estado, foi empregada ideologicamente pelas classes dominantes como forma de apagar o saber da guerra de classes, esquecer o ódio que o proletariado sentia pelos capitalistas, e reintroduzi-los em uma servidão dócil e voluntária. A criação de raças inimigas, em um mundo já cindido pela consciência da guerra de classes, respondeu a um trabalho ideológico das classes dominantes, produzioa por seus n-dispositivos disciplinares. Por meio desse trabalho, foi possível escoar o impulso de morte para fora do corpo capitalista. E fechado o corpo do capital, a teoria fascista abriu o do estrangeiro: Estes eram inimigos por natureza, seres bárbaros e cruéis, ávidos de devorar ao espaço vital dos nossos ancestrais, e destruir às riquezas e valores que, ao longo de séculos, foi cultivada pelo trabalho da sagrada família nacional.
Sabemos que as guerras, ao longo de toda história ocidental, estão atravessadas por razões econômicas e políticas, mas isso já não me parece capaz de esgotar a sua teoria. Não se trata, contudo, de pensar que toda a necropolítico seja parte de um ardiloso jogo dos interesses econômicos e políticos que, sabemos, inevitavelmente anima ao coração das elites dirigentes e ao pensamento de seus intelectuais. Nossos dias, em que "a violência de aniquilação” tão flagrantemente “se tornou um 'fim em si'“, em clara “contradição com os próprios cálculos de interesse (econômicos, políticos e militares)",3 nos obriga a repensar toda autoevidência da violência enquanto instrumento de reprodução social. A organização da necropolítica, enquanto exteriorização da pulsão de morte sobre um objeto externo, toca justamente a um ponto que ultrapassa qualquer racionalização econômica ou política, e nos impele a pensar em uma história anímica, atravessada por dispositivos disciplinares e elaborações de objetos libidinais.
Quer dizer, a que objetos, afinal, deve-se odiar? Onde a lei, afinal, permite a você colocar todo o seu ódio?
É preciso compreender alguma coisa do trabalho conceitual capaz de fazer o impulso de extermínio se espalhar não para todo lado, em explosões de fúria, mas sim de objetificá-lo, cuidadosamente, na forma de um corpo inimigo e sacrifical.
3. A ORIGEM DO MAL: GUERRA E CULTURA
A teoria do macaco assassino, subproduto atrofiado e idealista das velhas teorias do espaço vital, afirma que é a guerra é parte da nossa natureza: se em nossa origem está o crime, então iremos matar até o fim.
Já escrevi em outro lugar sobre o mal enquanto parte de uma herança cacogênica do ser humano, um infeliz atavismo de nossos antepassados primitivos, e portanto não irei me estender em tais pormenores. O que aqui cabe referir é o quanto o problema da guerra, na tradição jurídica e metafísica ocidental, é frequentemente conceituado como parte de uma lei natural. Como contraparte, a política e o estado, nascidos de uma singular capacidade das faculdades humanas, tornaria possível ultrapassar as determinações naturais, e instaurar a paz como lei nascida de nossa cultura civilizada. Natureza é impulso de morte, e a cultura deve ser sua sublimação. Ou, conforme escreveu Hobbes:
“Fora dos Estados civis, há sempre uma guerra de cada qual contra cada qual […] Com isso fica claro que, enquanto os homens vivem sem um poder em comum que mantenha a todos respeitosos, eles estão na condição que se denomina guerra, e essa guerra de cada qual contra cada qual”.4
A guerra, portanto, se dá como determinação de um estado de natureza, anterior a um estado civil. A paz somente nasce fora-da-natureza, depois que o ser humano abre mão de sua liberdade em favor do Leviatã, esse dispositivo abstrato capaz de refrear, pelo medo e pela paranoia, o impulso mortífero de pilhar e matar.
Longe mim pretender aqui rejeitar a existência de certo desejo de destruição. Seria pretender negar alguma coisa que, na minha experiência do mundo, é dada como auto-evidente, e não há trabalho maior do que negar conceitos que nos parecem assim, auto-evidentes, como se não fossem feitos de metafísica, e sim da mesma matéria dos corpos sólidos e palpáveis. Por outro lado, já não estou inclinado a aceitar a auto-evidência da causa natural da guerra. Se teremos que lidar para sempre com nossa pulsão de morte, precisamos tomá-la como parte de um dado cultural, quero dizer, elaborado e produzido por meio de certo trabalho conceitual.
Porque aqueles que desejam matar, não desejam matar a qualquer um. Desejam matar aos judeus, aos negros, aos estrangeiros, às mulheres, aos animais, etc. Se existe um impulso de extermínio, é porque também há um trabalho necropolítico, separado de necessidades impostas pela natureza, seja como determinação genealógica (raças) ou mesológicas (espaço vital), e mesmo de qualquer determinação infra-estrutural.
"Pode ser que a violência seja inerentemente uma fonte de satisfação, mas nós humanos podemos fazer guerra em quadras de jogo, através da magia, profanando a bandeira ou dos mil outros modos que existem de 'dar porrada', inclusive resenhar livros. O que a evolução nos conferiu é a capacidade simbólica de sublimar nossos impulsos em todas as formas culturais que a história humana conheceu”. 5
Os objetos de ódio são parte de uma história libidinal, nascidas do mesmo movimento capaz de fabricar aquilo que chamam de lei, cultura e civilização. Que as raças inimigas e os corpos subalternos sejam os objetos preferidos para o ódio, isso deve ser entendido como parte de um trabalho necropolítico, cuidadosamente feito ao longo da história. É por meio dele, e não de qualquer natureza, que a civilização pode abrir e fechar os nossos corpos para a violência.
Nesse sentido, acredito sim em elaboração: precisamos elaborar o nosso ódio, para que ele não seja simplesmente disperso e derramado segundo a lei necropolítica ocidental.
Quem, afinal, devemos odiar?
PROCURE SABER.
OLIVEIRA MARTINS, J. P. As raças humanas e a civilização primitiva. Tomo I. 4º edição. Lisboa: A. M. Pereira - Livraria Editora, 1921 [1893] pp. 38 - 39.
DARWIN, Charles. DARWIN, Charles. A origem das espécies e a seleção natural. Trad. Soraia Freitas. São Paulo: Madras, 2014 [1859]., p. 72.
OLIVEIRA, Agnes. “Diante das guerras: militarismo e masculinismo na esquerda”. In: Quilombo invisível, 18 de junho de 2025. Disponível em: «https://quilomboinvisivel.com/2025/06/19/diante-das-guerras-militarismo-e-masculinismo-na-esquerda/»
Citado por FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975 - 1976). Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 1999 [1997], p. 102.
SAHLINS, M. "Jungle Fever" In: The Washington Post, 10 de dezembro de 2000. Tradução publicada em: <<http://www.proyanomami.org.br/frame1/rese.htm>>.